sábado, 14 de junho de 2014

A vaia e a liberdade de expressão

Como a maioria dos brasileiros, assisti ao jogo de abertura da Copa do Mundo 2014 pela televisão. Os ingressos estão a preços proibitivos. Comprei comidas, bebidas, e até uma camisa nova para torcer pela seleção contra a Croácia - isso, eu posso comprar. Os meninos da seleção são novos, cheios de gás, e se faltar experiência, vai sobrar vontade. Deu pra ver vontade nos olhos concentrados e marejados enquanto o hino tocava: os jogadores com a Amarelinha, perfilados e abraçados, cantando emocionados o hino, o estádio cantando junto. Foi bonito. Só que ao final do hino se seguiu um coro obsceno, e eu me envergonhei de pensar que o mundo estava vendo aquilo. Ao redor do mundo, gente reunida em suas casas, em bares, nas ruas, com amigos e parentes, para ver um jogo de futebol, ouvindo aquilo. O Brasil está sediando um evento mundial, tem uma vitrine única no mundo agora, e é isso que mostramos.
Não, não me senti representada por aquelas pessoas que ofenderam a presidente com palavras tão baixas. Tenho que falar isso, porque essas pessoas se dizem patriotas, representantes de uma maioria da população que estaria insatisfeita com o governo federal. Primeiro, porque as pessoas ali não eram representantes da maioria dos brasileiros: eram quase todos brancos (brinquei de "Cadê o negro", achei 3 na arquibancada) e classe AAAAA+; gente rica o suficiente para pagar R$990 ou coisa assim pelo ingresso, ou com influência e amigos para ganhar uma cortesia para estar ali; a nata da sociedade paulistana. Segundo, porque eu tenho educação - e eu não estou falando de formação escolar. Eu fui ensinada a mostrar respeito aos mais velhos,  a chamar de "senhor" e "senhora", e a cuidar das crianças. E nos dois casos, palavrões, nem pensar. Não se fala palavrão nunca, diria minha mãe, mas é mais feio quando se tem uma dessas plateias - ou alvos. Dilma Rouseff é Presidente da República, e foi eleita democraticamente. Isso, para mim, significa que em dado momento ela representou a maioria, que votou pela sua eleição. Os insatisfeitos terão a chance de mostrar, civilizadamente, nas urnas, seu desejo de mudança. É assim que funciona uma democracia: você vai lá e vota - e antes disso pesquisa o histórico e as propostas dos vários candidatos. Também fiquei chocada com o tanto de criança que estava no estádio e ouviu seus pais falarem aqueles palavrões e tratarem uma autoridade política de seu país daquela forma - pessoas que provavelmente se outorgam arautos da moral e dos bons costumes do alto de suas torres de marfim em seus condomínios fechados, seus carros importados e seus diplomas variados. Essas pessoas protestam pedindo, entre outras coisas, mais investimento na educação brasileira. Eles, claro, já estão investindo na formação de seus pequenos brasileirinhos, porque você sabe, a palavra convence, o exemplo arrasta. 
Uma última observação quanto à repercussão de tudo isso: até onde vai a liberdade de expressão? Nas redes sociais, discussões acaloradas sobre o incidente quase sempre incluíam as palavras "liberdade de expressão". Que o povo tem direito de protestar, que é legítimo, que as autoridades também desrespeitam o cidadão, etc. Concordo com tudo isso. O direito de protesto é uma das maiores benesses da democracia, e é graças a ele que se pode ir às ruas e pedir melhores escolas, hospitais, estradas, salários. A corrupção é mesmo uma forma de desrespeito ao cidadão, um crime lesa-pátria, a meu ver, roubar seu próprio povo. Mas mandar tomar no cu não é forma de protesto. É desrespeito mesmo. É ofensivo. Não é liberdade de expressão. Não coincidentemente, muitas das pessoas que ouço repercutindo positivamente o ocorrido, "tinha mais era que ter xingado mais vezes", curte também Danilo Gentili (aparece na minha timeline), aquele bacana que acha que pela piada vale tudo, inclusive ser racista, machista e homofóbico, porque ele tem o direito de falar o que quiser. Maldita "patrulha do politicamente correto" que fica tolhendo a liberdade de expressão de gente como ele, com tanto a acrescentar para seus fãs. Liberdade de expressão tem um preço, que é ser responsável pelo que se diz.